A qualidade literária da Eurovisão #2

eurovisão abril 30, 2017

Não sei se é moda mas as músicas ultimamente têm letras cada vez mais profundas. Parece que o Fernando Pessoa teve um ataque de esquizofrenia ainda maior que o normal e juntou os 300 heterónimos ao mesmo tempo para criar letras que saíram sabe-se lá de onde. E se na Eurovisão as tendências musicais são seguidas à risca (por isso é que entre 42 canções há umas 35 que são praticamente iguais), as tendências literárias não lhe ficam atrás.

Comecemos pela Austrália (porque é que a Austrália participa na Eurovisão? Ninguém sabe, mas quantas mais músicas medianas, melhor) que envia um rapaz de 17 anos a dizer que já se queimou demasiadas vezes para amar facilmente, daí que com ele o amor não seja fácil nem barato. Vale a pena lembrar que o cantor tem 17 anos e, a menos que seja vampiro e os 17 anos equivalham a 100, não me parece que tenha vivido o suficiente para se "queimar" assim tantas vezes, a menos que isto seja literal e aí começo a preocupar-me com a saúde mental e física do rapaz. 

"It don't come easy and it don't come cheap
Been burned too many times to love easily"

Avançamos e diz ele que se costumava mover rapidamente para apagar o passado. Não querendo ser óbvia, a menos que ele tenha alzheimer (muito precoce) não apaga nada. Felizmente ele chega a essa conclusão no verso seguinte.

"I used to move in fast to erase my past
But it never works, no, it never lasts, no"

Passemos para a Bélgica, cuja música andou nas bocas de todos assim que saiu. Eu, que sou hater por excelência daquelas músicas de que todos parecem gostar, nunca consegui ouvir isto até ao fim. Possivelmente porque a voz dela me irrita e dá sono. É isso ou o facto de ela dizer, e cito: "completamente sozinha na zona de perigo, estás pronto/a para agarrar a minha mão?". Amiga, se estás sozinha, quem é que te vai agarrar a mão? Um fantasma? O teu amigo invisível?

Por falar em zona de perigo, é possível que nessa zona estivesse a representante do Azerbaijão tendo em conta que toda a música em si tem uma envolvente de perigo e a frase mais repetida é "Have my skeletons". Das duas uma: ou ela coleciona esqueletos, ou tem mais que um o que me parece excelente caso precise de peças suplentes, mas ao mesmo tempo bastante injusto tendo em conta que se eu partir costela não tenho nenhum esqueleto bónus para tratar disso.

A Islândia é um dos casos de maior esquizofrenia/estupidez deste ano. Ponto um: ele está debaixo de água a tentar puxá-la. Se alguém nos está puxar para debaixo de água é geralmente contra a nossa vontade a menos que sejamos sereias, certo? Errado. Porque ela procura-o. Sim, ele está a puxá-la para debaixo de água e ela procura-o. Porquê? Não sei, não sou assim tão boa a decifrar códigos. (Notem como não há ponto dois).

"You’re under the water
Trying to pull me under
I reach for you
I reach for you"

Mas se acham que esta maravilha acaba aqui, preparem-se para esta citação: "fazes-me sentir como papel, cortas mesmo através, estou presa a ti como cola, papel...". Eu sei que isto parece inventado, mas não é. Ora eu já experienciei imensas emoções mas nunca me senti como papel. Aliás, atrevo-me mesmo a dizer que além da Svala (que é a cantora), nunca ninguém se sentiu como papel. Como é que nos sentimos como papel? Assumimos os sentimentos de um papel? E que sentimentos é que um papel pode ter? Confesso que sempre achei que aqueles papéis coloridos tinham outro ar que os brancos não têm e por isso imagino sempre que nesta canção ela se refere a um papel azul ou amarelo, mas nunca a um branco. Poderá uma folha A4 branca ter sentimentos? É a questão que fica no ar.

Continuamos numa viagem pelas ilhas e vamos até Chipre (não literalmente) apreciar três minutos de puro barulho (que no fundo é o que isto é) em que se ouve, no meio de uma música de amor, "let me be, be your gravity". Não sei se quem escreveu esta letra tem noção do que é a gravidade mas cá fica "Gravidade é o fenómeno de atração que comanda a movimentação dos objetos. Na Terra, a gravidade é a propriedade que faz com que os corpos se dirijam para o centro da terra", ou seja, a gravidade é o que faz as coisas cair. Portanto ele quer ser aquilo que a faz cair. Que este tipo de romantismo nunca acabe!

Ainda nas ilhas temos aquela música de que ninguém se lembra e que eu não faço ideia a que é que soa. A única coisa de que me lembro são dois versos que dizem: "sem fôlego, vou estar a ver-te para sempre, sabendo que há uma vaga no teu coração". Mais uma vez temos aqui amor ao mais alto nível. Para quem não sabe (ou para quem não se lembra como eu não me lembrava até a Elizabete me alertar para isso) o nosso coração está divido em 4 partes e por isso ela está à espera que ele morra para depois ficar com uma vaga que ele tem no coração. Convém é que ele morra depressa que ela já está sem fôlego.

Larguemos as ilhas e vamos até à Áustria onde o próprio nome da canção é uma piada. "Running on air". Sim, correr no ar. Porque isso nem se chama voar nem nada. Felizmente também há letras com bom senso no palco da Eurovisão como é o caso da da Macedónia que afirma que "tudo o que preciso para me mexer é o som do meu coração". Isto é tudo verdade, até ganhares artrite.

A Alemanha oferece-nos um plágio manhoso de Titanium com uma letra muito interessante: "I've been walking asleep / Dreaming awake (...) / I'm not afraid of making mistakes / Sometimes it's wrong before it's right / That's what you call a perfect life". Para mim perfeito era encontrar agora o bilhete premiado do Euromilhões, mas para ela é ser sonâmbula, sonhar acordada, cometer erros e as coisas correrem-lhe mal e só depois bem. Seem legit.

Nuestros hermanos tiveram uma eleição da canção que os representa bastante interessante. Toda a gente queria uma música bastante má chamada "Contigo" mas o júri acabou por dar a vitória a outra igualmente má chamada "Do it for your lover". E, se não conseguiram decorar o nome por ter demasiadas palavras, não se preocupem porque ele é repetido 21 vezes ao longo dos três minutos que dura a música.
  
No meio disto tudo perdeu-me o melhor verso deste ano quando a Grécia decidiu fazem um revamp da sua música chamada "This is love" (dá para perceber como é má só pelo título, não dá?). Onde agora se ouve "This is love, reaching out for the stars" (que também é bastante mau), antes ouvi-se "This is love, rain falls from above". Genial, não é? "Isto é amor, a chuva cai de cima". Custa-me perceber esta mudança.

No meio de 42 músicas há muitas cheias de clichés, básicas e desinteressantes (não é o caso destas). Há uma ou outra boazinhas (como é o caso da nossa) e há uma absolutamente genial que, curiosamente, corresponde à minha música preferida e também grande favorita à vitória final. Senhoras e senhoras, uma genialidade chamada "Occidentali's Karma":


9, 11 e 13 de março, sintonizem na RTP1 para verem este fantástico espetáculo repleto de músicas assim-assim.

Fora das quatro linhas

Benfica abril 22, 2017
Sempre houve ódio no futebol e isso é um dado adquirido. O que nem sempre houve foram órgãos de comunicação social a espalhar esse ódio. No meu tempo faziam-se notícias sobre futebol e menos sobre extra futebol. No meu tempo os programas para discutir futebol serviam, surpreendentemente, para discutir futebol ao invés do que acontece hoje em dia em que esses programas servem para três atrasados mentais gritarem uns com os outros. Fui lendo umas frases aqui e ali sobre o atropelamento desta madrugada até que decidi ir informar-me no jornal mais vendido do país. O Correio da Manhã conquistou-me logo com o título da notícia:


"Adepto do Sporting assassinado junto ao Estádio da Luz". Notem que se o senhor fosse adepto, digamos, da Fiorentina, o impacto deste título seria nulo. Ou se fosse um adepto do Sporting assassinado em frente ao Continente de Telheiras. Ou, ainda mais radical, um homem atropelado em Lisboa. Nenhum destes títulos dava tantos cliques e, curiosamente, também nenhum deles espalhava tanto ódio. Abrimos a notícia e temos um festival de suposições: "Um italiano ligado à Fiorentina mas que também será adepto do Sporting", "Marco Ficini, de 41 anos, estaria com elementos da claque leonina Juve Leo, de que faria parte"... Os "será", "estaria" e "faria" criam um clima de certeza mas ao mesmo tempo de dúvida. Isto é o melhor que se pode fazer no "jornalismo": não há certezas? Mete-se um talvez que o pessoal acredita e nós depois podemos desmentir dizendo que nunca fizemos afirmações.

Estou ansiosamente à espera para ver como vai ser tratado este caso no Prolongamento, aquele programa onde se discute tão bem o que se passa nas quatro linhas. É curioso que tirei Ciências da Comunicação porque queria ser jornalista de desporto e, hoje em dia, não me consigo identificar sequer com o jornalismo feito neste país. Se há bom jornalismo e bons jornalistas? Claro que há. Ainda há umas semanas tive o prazer de conhecer o Carlos Daniel e dizer-lhe o quanto o admiro enquanto jornalista e comentador desportivo. O problema do mau jornalismo são as pessoas que lêem/vêm este lixo, porque no momento em que o sensacionalismo deixar de vender, os órgãos de comunicação social vão ter de apostar noutra coisa. Até lá vão-se alimentando ódios.