A cordialidade do foda-se

julho 14, 2022

No outro dia aconteceu-me uma coisa que costuma suceder muito: vi escrito, numa qualquer rede social, a palavra "fodasse". Já há uns anos que deixou de me chamar a atenção, mas foi escrita por uma pessoa com muitos anos de estudos. Hoje em dia, todos temos muitos anos de estudo, mas esta pessoa tem demasiados.

Ora, isto não prova que a pessoa não sabe escrever. Prova, sim, que há uma falha grave no nosso ensino, que foi identificada, em 2016, pelo Ricardo Araújo Pereira e em relação à qual ninguém faz nada. Talvez ter estado a tirar um curso de revisão de texto me tenha alertado para questões linguísticas e gramaticais nas quais não pensava até há um mês. 

Desde que vi isto que tenho pensado bastante sobre o assunto. Não propriamente sobre o erro, mas sobre a sua correção e respetivo significado. Primeiro, importa referir que "fodasse" não existe. Nem tão pouco pode ser o imperfeito do conjuntivo do verbo "fodar" por este, ao contrário de "foder", não está dicionarizado. 

Na origem deste erro está um epidemia que afeta mais portugueses do que o covid (sendo que só eu e mais meia dúzia de pessoas é que ainda não apanhámos covid): a confusão entre o presente reflexo e o imperfeito do conjuntivo. O segredo? Se conseguirem por "se" antes da palavra, não a hifenizem. De nada.

Mas passemos então ao assunto que tem ocupado o meu cérebro: o foda-se. Foda-se está no dicionário como sendo uma interjeição designativa de admiração, surpresa, indignação, desagrado, indiferença, raiva etc. Mas imaginemos que o verbo "fodar", previamente referido, existia. Foda-se seria, assim, uma forma do imperativo do verbo. 

No fundo, soltar um foda-se, é mandar foder (ou "fodar"?) alguém. Mas não é mandar foder alguém de qualquer maneira, que nós somos mal-educados, mas sempre cordiais. Selvagens dizem "fode-te". Nós, que somos pessoas civilizadas, dizemos foda-se, onde o "se" se refere a você, que é preciso manter alguma distância de quem mandamos foder-se (ou fodar-se?). 

Tinha escrito este texto inicialmente para o Ciberdúvidas, mas depois repensei e achei melhor não o enviar para o coordenador. Não por estar repleto de asneiras, mas antes por ter procurado fontes que comprovassem o que aqui escrevi e não ter encontrado nenhuma. No fundo, alguém tem de levantar as grandes questões para que depois outros as estude. De nada, sociedade.

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